Dor, cura e o consumo simbólico
Saúde talvez seja o assunto mais comentado, sobretudo por envolver dois
aspectos relevantes à condição humana: nascer e morrer. Doença está
relacionada, quase sempre, à dor. A dor talvez seja um dos maiores desafios
da medicina, talvez porque tal palavra ultrapasse o seu próprio significado.
Segundo OMS (Organização Mundial da Saúde), saúde é “um estado de
completo bem-estar físico, mental, social e não apenas ausência de doença ou
enfermidade.”
No contexto da
atenção à saúde, os medicamentos têm adquirido o status de símbolo de saúde,
representando a materialização do desejado “completo estado de
bem-estar”(Lefevre, 1991). Medicamentos são considerados na sociedade de
consumo, como produtos comuns. Na realidade não deveriam ser tratados como tal.
O produto não pode colocar em risco à saúde das pessoas. Consumir medicamentos,
sem orientação de profissionais da saúde, é o mesmo que consumir veneno, uma
vez que o que diferencia droga (medicamento) de veneno é a dosagem. Parece
assustador, e realmente é.
A publicidade e o ponto de venda (farmácias e
drogarias) incentivam à
automedicação. Portanto, ocorre que a grande maioria da população brasileira tem
acesso à publicidade, ao ponto de venda e ao medicamento, mas desconhece como e
quando deve ser consumido. É o consumo irracional e indiscriminado. Muitas
vezes o que é divulgado como o responsável pelo alívio imediato, pode levar a
outras doenças e à morte.
Segundo a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, pertencente ao Ministério da
Saúde) o medicamento é considerado
o meio rápido para a resolução de problemas de diversas origens. “O controle
dos corpos e a cultura da medicalização em uma sociedade que funciona de uma
forma mais prática, pode fazer com que muitas vezes as pessoas sintam que
precisam se automedicar.”(BVSMS, 2019). Fato preocupante, uma vez que o Brasil está entre os países onde mais se
consome medicamentos no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos,
Japão, China, Alemanha e França (Kedouk, 2016, p. 19).
O Anuário Estatístico do Mercado Farmacêutico, organizado pela própria ANVISA,
apresenta números espantosos. Em 2017, as empresas movimentaram mais de R$ 69,5
bilhões com a venda de mais de 4,4 bilhões de embalagens de medicamentos.
Medicamento então não deveria ser submetido às lógicas comerciais. E isso está
longe da intenção de remediar ou amenizar a dor das pessoas.
Mas não é de hoje que a prática do autotratamento existe no país.
Trata-se de herança cultural. Para amenizar a dor, são utilizados desde achados
indígenas, chás e receitas caseiras com ervas, garrafadas regionais até o
consumo abusivo de medicamentos comprados sem limites em farmácias.
O medicamento é um símbolo da saúde. A crença de que existe a total cura
das mais diversas doenças nas pílulas é uma realidade. Sabe-se que a
automedicação pode causar reações adversas e efeitos colaterais além de
mascarar doenças e problemas de saúde. A herança cultural e a falta de acesso
aos médicos contribuem com o alto índice de automedicação no país e, quando
somadas a alta exposição de mensagens publicitárias na mídia, tornam a
automedicação um caso de saúde pública.
Para Nascimento (2005, p. 22), a exploração do valor simbólico do
medicamento, socialmente sustentado pela indústria farmacêutica, agências de
propaganda e empresas de comunicação, passa a representar um dos mais poderosos
instrumentos para a indução e fortalecimento de hábitos voltados para o aumento
de seu consumo. “Os medicamentos passam a simbolizar possibilidades imediatas
de acesso não apenas à saúde, mas ao bem estar e à própria aceitação social.”
Segundo Lefevre (1991, p. 18) “o objeto medicamento,
na formação social brasileira, não é uma, mas pelo menos, três coisas: um
agente quimioterápico, uma mercadoria e um símbolo.”. E o que é mais
preocupante, as três coisas ao mesmo tempo.
O aspecto simbólico é reforçado também no
comportamento do consumidor. Pois o medicamento acompanha gerações das
famílias. E nesse sentido, o valor do medicamento está além de seu preço e de
sua função, é “prescrito” por avós, pais e mães sem qualquer orientação médica.
A publicidade e o marketing investem alto nessa fidelização da marca. E mais
perigoso ainda é que medicamentos viciam, ou seja, medicamento não é produto
qualquer.
Publicidade
de Medicamentos no Brasil
A
publicidade é intencional e sua função primordial é levar o consumidor ao
produto, por meio da mensagem persuasiva. Para tal, a publicidade bebe da fonte
do cotidiano, busca retratar as pessoas em seus anúncios, para gerar empatia.
“Por representar o real, o cotidiano dos indivíduos, seus hábitos de consumo, a
publicidade tem seu caráter verossímel, parece ser real, mas não é o real, como
uma ficção.” (Trindade, 2012, p. 39).
Na
lógica da Publicidade, o importante é que o consumidor
utilize uma marca a vida toda. Nascer e morrer consumindo o mesmo
medicamento, é o que interessa à indústria farmacêutica, que investe
em publicidade desde sempre.
A
história da publicidade brasileira tem relação direta com a história do país. A publicidade de medicamentos nasce da
necessidade, ou seja, a busca pela cura e a oferta de milagres. Em 1827, os
remédios anunciaram no Jornal do Commercio, e nunca mais deixaram a mídia de
massa (Bueno; Taitelbaum, 2008, p. 18).
Mas foi a partir de 1850 que os versos e as rimas passaram a fazer parte
da linguagem publicitária brasileira. Somente com a conhecida “poesia do
comércio”, os anúncios passaram a ocupar espaço em cartazes de bondes, jornais,
revistas, enfim, nos meios de comunicação de massa (Jesus, 2008).
A indústria farmacêutica instalou-se no Brasil muito
cedo e passou a investir em todos os tipos de anúncios: dos cartazes em bondes,
aos anúncios de revista, anúncios em jornais e outdoors. O grande anunciante do setor, a empresa alemã Bayer fez campanhas regulares na mídia. A Bayer
destacava-se pela originalidade dos textos e qualidade gráfica dos anúncios. Sua
principal estratégia era associar seus medicamentos às palavras: original, puro,
científicos. Eram muitos os anúncios da Bayer para os seus medicamentos.
Anúncios no Brasil por poetas, escritores e ilustradores. Por sinal, foi o
escritor Bastos Tigre o responsável pela elaboração do slogan “Se é Bayer, é bom”, durante A Semana de Arte Moderna, de
1922. Slogan que a marca utiliza há
quase um século.
Diferentemente do que ocorria em antigos anúncios de
medicamentos, onde as marcas prometiam alívio imediato, sem qualquer controle
da veracidade das mensagens, atualmente a publicidade de medicamentos é
Regulamentada e Fiscalizada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância
Sanitária) e pelo CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária).
A Resolução da Anvisa, RDC 102, de 2000, estabelece
normas para a publicidade de medicamentos. Normas essas que controlam o que deve
conter nas mensagens publicitárias e o que não pode conter nos anúncios,
inclusive nos medicamentos sem exigência de prescrição (OTC), que são os que
têm permissão de veicular na mídia ao consumidor final. Não parece ser tarefa fácil fiscalizar tantas
mensagens, sobretudo no meio digital. Até porque as estratégias de marketing
são muito mais ousadas e velozes do que as Resoluções e fiscalização.
Considerações finais
O presente artigo resgatou conceitos de Comunicação e Saúde e constatou
que a publicidade de medicamentos faz parte da história da publicidade
brasileira. A indústria farmacêutica atravessou anos como poderoso anunciante
na mídia. Anúncios de medicamentos, de diferentes formatos, veicularam durante
décadas promessas de cura. A estratégia de mostrar pessoas sofrendo e o
medicamento como grande salvador era mensagem comum na mídia brasileira. A herança
cultural e a influência da mídia são fatores responsáveis pelo alto consumo de
medicamentos por parte dos brasileiros. O pouco acesso à saúde e a facilidade
em adquirir medicamentos em farmácias, fez com que o brasileiro passasse a se
automedicar. Atualmente o mercado farmacêutico está entre os seis do mundo. Os
laboratórios investem mais em marketing e publicidade do que em pesquisas. O medicamento
e a saúde estão submetidos às lógicas comerciais. Medicamento faz parte do
consumo simbólico. Ou seja, medicamento enquanto produto, representa o alívio à
dor de cabeça, à cura da gripe, à cura da depressão. A publicidade legitimou
esse poder do medicamento, prometendo milagres de cura. Mesmo atualmente com
Resoluções e fiscalização da ANVISA e CONAR, as mensagens publicitárias
continuam apresentando a dor como vilã e o medicamento como salvador. A linguagem
verbal e visual nos anúncios antigos de medicamentos da Bayer, demonstram que
prometer, ameaçar, exagerar, era algo comum para a época, e não representavam
desrespeito, perigo, incentivo à automedicação, nem abuso ao consumidor.
Por fim, o trabalho revela que a proposta da
publicidade de medicamentos no Brasil é conquistar consumidores, não necessariamente em busca do alívio à dor, tornando-os
fieis à marca, do nascimento à morte.
Bibliografia:
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Brasília:
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Jesus, P. R. C. (2008). Slogans na
propaganda de medicamentos. Um estudo transdisciplinar: Comunicação,
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Jesus, P. R. C (2014). Criação publicitária: conceitos, ideias e campanhas.
São Paulo: Mackenzie.
JESUS, P.R.C. Do berço ao túmulo. Consumo e Publicidade de Medicamentos no
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Kedouk, M. (2016). Tarja Preta.
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Lefèvre, F. (1991). O
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Lindstrom, M. (2009). A lógica do consumo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.114-123.
Nascimento, A. (2005). Isto é Regulação? São
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Pinto, Z. A. (2005). Reclames da Bayer: 1911 – 1942. São Paulo: Carrenho Editorial.
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