sábado, 19 de novembro de 2016

Ética na Propaganda de Medicamentos no Brasil


Enquanto pesquisadores, acadêmicos, profissionais da área de saúde e comunicação e órgãos que atuam em defesa do consumidor reúnem-se em congressos e workshops em prol da saúde da população, a indústria farmacêutica atua rápido, elaborando estratégias de marketing e utilizando a propaganda como poderosa ferramenta para vender e anunciar os mais variados medicamentos no mercado brasileiro.
Uma das primeiras tentativas para inibir abusos na propaganda de medicamentos e moralizar o mercado, aconteceu em 1940, quando a Constituição ganhou o Decreto-lei nº 4.113, assinado por Getúlio Vargas e pelo ministro da Saúde, Gustavo Capanema. O Decreto-lei regulamentava a propaganda para médicos, dentistas, parteiras, massagistas, enfermeiros, casas de saúde e estabelecimentos congêneres, bem como preparados farmacêuticos. Dentre outras coisas, segundo o Art. 5º “É proibido anunciar, fora dos termos dos respectivos relatórios e licenciamentos, produtos ou especialidades farmacêuticas e medicamentos que tenham sido licenciados com a exigência da venda sob receita médica.” Em Parágrafo único, afirmava que o texto aprovado teria validade em todo território nacional, devendo, porém, o anunciante exibir a aprovação do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina, com respectivos números de ordem e data, quando reclamada pela autoridade competente, ou pelos órgãos de publicidade interessados. No Art. 8º, os anúncios, em geral, poderiam compreender textos educativos. Indicava que o não cumprimento da lei implicaria na intimação do anunciante, que teria um mês para retirar o anúncio de circulação. O laboratório poderia entrar com recurso que seria julgado pelas autoridades sanitárias, ainda dentro de um mês, dando direito ao réu de recorrer à instância superior, em caso de negativa de seu pedido. Se, ainda assim, o anúncio continuasse proibido e não tivesse sido retirado de circulação, o infrator pagaria uma multa que podia variar entre cem mil réis a um conto de réis, inclusive elevado ao dobro em caso de reincidência (BUENO, 2008, p. 87).
Mas de fato, tal moralização pouco intimidou a indústria, que continuou comercializando medicamentos em farmácias sem exigir receita médica e seguiu durante anos prometendo curas milagrosas em suas mensagens publicitárias.
O sintoma capitalista faz-se presente no país por meio de marketing, ou seja, um medicamento vale mais que seu valor terapêutico, já que o invólucro que protege a substância, a embalagem, a distribuição, a propaganda, as promoções, enfim, as ferramentas utilizadas pelo mercado da indústria farmacêutica, o encarecem.
O processo de comunicação utilizado pela indústria farmacêutica envolve, basicamente, duas frentes, a primeira: o consumidor final (a população) com o medicamento de venda livre; a segunda: o setor da saúde, representado por médicos e farmacêuticos. Apenas medicamento de venda livre pode ser propagado à população. Muitos dos laboratórios têm sua própria agência de propaganda (house agency) ou departamento de marketing e propaganda por se tratar de um trabalho sigiloso e se preservar da concorrência de outros laboratórios da indústria.
Se há um grande investimento por parte da indústria em pesquisas, há também em marketing, exemplo disso é que na Pfizer, embora 90% dos responsáveis pela condução da pesquisa sejam cientistas, a equipe é chefiada por profissionais de marketing. Preocupada com a propaganda, a Pfizer utilizou personalidades quando no lançamento do Viagra. Nos Estados Unidos, o conhecido político republicano Bob Dole foi o garoto-propaganda, enquanto no Brasil, Pelé fez esse papel.
Os propagandistas exercem um papel fundamental na divulgação de novos medicamentos, especialmente medicamentos éticos, controlados (tarjados). É uma comunicação interpessoal, junto aos balconistas de farmácia, farmacêuticos, além de dentistas e médicos, em consultórios.  
A Lei nº 6.360 foi responsável por essa divisão entre medicamentos éticos e os de venda livre. Em 23 de setembro de 1976 com o surgimento da Lei nº 6.360 (mais conhecida como a Lei de Vigilância Sanitária, atualizada pela Lei nº 9.294, de julho de 1996) passou-se a perceber a intenção de se reforçar as exigências legais quanto à regulamentação da propaganda de medicamentos. O Art. 58 dizia que “a propaganda, sob qualquer forma de divulgação e meio de comunicação, dos produtos sob o regime desta Lei somente poderá ser promovida após autorização do Ministério da Saúde, conforme se dispuser em regulamento.” (BUENO, 2008, p.120). Ou seja, a ideia era moralizar, regular e, sobretudo coibir os abusos. Medicamentos sujeitos à prescrição médica (tarja vermelha e preta) teriam a propaganda restrita a publicações exclusivamente distribuídas a médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos. Lembrando que tarja preta para medicamentos psicotrópicos, que causam dependência, e tarja vermelha para os então chamados medicamentos éticos, que legalmente não poderiam mais anunciar na mídia de massa, o que até então ocorria. Enquanto a propaganda dos medicamentos de venda livre, sim, poderia ser veiculada na mídia de massa.
O Decreto nº 79.094 foi considerado um avanço regulatório, embora tenha surgido apenas para referendar a “propaganda ética”, procedimento que a indústria farmacêutica multinacional já vinha colocando em prática há décadas.
Segundo Angell, ironicamente (2007, p. 157), “os laboratórios farmacêuticos são generosos com os médicos nas suas atividades ‘educativas’. Os laboratórios fornecem informações aos médicos e os médicos dão um feedback aos laboratórios...mas o dinheiro só vai num sentido.” A autora faz várias denúncias à indústria farmacêutica e chega a relatar casos onde a indústria se infiltra no meio médico, na mídia (por meio de programas supostamente educativos), se infiltra inclusive na população, como no caso que a autora relata sobre o surgimento espontâneo da população preocupada, por exemplo, com a hepatite C. O movimento cresce e na verdade o que está por trás é a indústria, como a Shering-Plough, fabricante do medicamento Rebetron. Para ela é uma forma de marketing disfarçado de informação. Angell afirma que a indústria patrocina grupos de defesa de pacientes. Casos assim relatados por Márcia Angell aconteceram e ainda acontecem nos Estados Unidos, mas não se deve esquecer que as mesmas indústrias americanas e européias estão presentes no Brasil.
A ANVISA, que procura fiscalizar e regular a propaganda de medicamentos no Brasil, junto ao CONAR, começou a monitorar as propagandas em julho de 2000, quando realizou a primeira autuação, com base na Lei nº 6.360/76. Nota-se a morosidade por meio das datas apresentadas.
O passo seguinte foi dado em 30 de novembro de 2000, com a publicação da Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 102, ou “Regulamento sobre propagandas, mensagens publicitárias e promocionais e outras práticas cujo objeto seja a divulgação, promoção ou comercialização de medicamentos de produção nacionais ou importados”. A partir dessa Resolução, toda propaganda de medicamentos passaria a conter obrigatoriamente a advertência indicando que “AO PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO”.
Com a Resolução, foi notória uma fiscalização mais atuante. Não apenas um esforço da ANVISA, com um trabalho sistematizado de uma verdadeira “caça” às campanhas enganosas, como do IDEC ao proteger e denunciar abusos, e o próprio CONAR, ao regulamentar e fazer valer o ANEXO I, do Código. Além de algo extremamente importante, que foi a preocupação vigilante da população com um canal aberto no Ministério da Saúde, por meio de telefones e sites.
Em fevereiro de 2004, a Portaria/Anvisa nº 123, criou a Gerência de Monitoramento e Fiscalização de Propaganda, de Publicidade, de Promoção e de Informação de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária.
Mas ainda na tentativa de atualizar e moralizar a propaganda de medicamentos no Brasil, assim como a venda irregular e o consumo desenfreado, a ANVISA apresentou novas regras, em Resolução estabelecida em 17 de dezembro de 2008, passando a vigorar em junho de 2009. Dentre outras exigências, a ANVISA entendeu que faltavam limites no uso de celebridades com discursos abusivos. Dircursos que estavam servindo de incentivo ao autoconsumo de medicamentos, já que as celebridades não têm qualquer conhecimento médico ou farmacêutico, porém são dotadas de talento e sabem interpreter, o que passou a ser perigoso ao olhos da ANVISA.
Embora, historicamente, a população corresse risco frente às promessas de cura da indústria farmacêutica, Nascimento (2005, p. 41) comenta que, uma conquista da sociedade brasileira, trouxe impacto à regulamentação do mercado de medicamentos e particularmente da propaganda, foi o Direito de Defesa do Consumidor inscrito na Constituição de 1988. Antes dessa conquista, a fim de relembrar passagens importantes em proteção ao consumidor, Giacomini Filho (1991, p. 36-40) relata que, em 1976, foi concluída a Comissão Parlamentar de Inquérito de Defesa do Consumidor, registrando vários temas, dentre eles medicamentos e indústria farmacêutica. Em 1987, foi criada pelo governo paulista a Secretaria da Defesa do Consumidor, absorvendo PROCON e IPEM e, no mesmo ano, criado o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).
Em 1990 surgiu o Código de Defesa do Consumidor. De acordo com ele, os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não podem acarretar riscos à saúde ou à segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações adequadas e necessárias a seu respeito. O Código proíbe, ainda, a publicidade enganosa ou abusiva. Toda publicidade deve ser clara para que o consumidor possa identificá-la facilmente. O fornecedor deve manter informações técnicas e científicas para provar que a propaganda é verdadeira. Tudo o que for anunciado deve ser cumprido, pois as informações da propaganda fazem parte do contrato.
Portanto, é direito do consumidor informação sobre quantidade, características, composição, preço e riscos que o produto porventura apresente. O Código configura crime contra as relações de consumo, sem prejuízo do disposto no Código Penal e leis especiais, qualquer agressão a esses princípios (NASCIMENTO, 2005, p.42). Giacomini Filho (1991, p. 106) lembra ainda que: “[...] a atuação ética da publicidade também é controvertida na área de medicamentos, tanto quando se dirige ao público incentivando a automedicação como diretamente ao médico”. Salienta que muitas das ações feitas pela indústria farmacêutica não passam pelas agências nem pela mídia de massa porque são direcionadas aos médicos e farmacêuticos.

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